Amar é, de fato, um exercício radical de liberdade
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
O amor autêntico surge quando o outro é percebido não como objeto da minha vontade, mas como sujeito pleno de sua própria existência. Amar, nesse sentido, é reconhecer a alteridade como tal — não absorvê-la, não reduzi-la, mas permitir que ela floresça em sua diferença. A relação de posse, ao contrário, despersonaliza; ela subtrai do amado sua liberdade constitutiva e transforma o vínculo em instrumento de domínio.
A posse não apenas corrompe o amor, mas também o destrói em sua essência. Isto porque o amor, se for genuíno, exige um ato de entrega voluntária, jamais forçada. É no livre retorno do olhar do outro, livre para amar, livre inclusive para não amar, que reside a dignidade do amor recíproco. A felicidade imposta é uma violência disfarçada; a felicidade partilhada nasce apenas quando ambas as partes são livres para escolhê-la. A felicidade do outro, quando autêntica, jamais poderá ser alcançada se subordinada ao controle, pois, ao contrário, floresce quando se é livre para partir — e mesmo assim se escolhe ficar.
Em viés ontológico, o amor possessivo representa uma negação da angústia fundamental que define o ser humano como projeto aberto, como liberdade em movimento, como inacabamento. A tentativa de possuir o outro é, na verdade, uma recusa de aceitar que ele escapa inevitavelmente ao meu controle, pois é um ser em devir, com sua própria história, desejos, escolhas e fins. Sartre adverte que tentar congelar o outro em um papel — "meu" — é um modo de má-fé, uma forma de ocultar o caráter contingente e vulnerável de toda relação humana. A liberdade do outro é dolorosa, sim, pois escapa ao nosso desejo de permanência. Mas é precisamente essa vulnerabilidade que confere ao amor sua beleza: ele é frágil, efêmero, arriscado — e, por isso mesmo, profundamente humano.
Não há verdadeira moralidade onde há instrumentalização, eis que tratar o outro como meio para a minha segurança emocional, para a satisfação de meus desejos ou para a manutenção de uma imagem idealizada da relação é violar o imperativo categórico kantiano de tratá-lo sempre como fim em si mesmo. Amar eticamente é reconhecer no outro um centro de valor independente, cujo florescimento deve ser desejado não por conveniência, mas por respeito.
O amor que liberta, que não sufoca, é o que mais se aproxima da arte, do milagre de duas liberdades que se encontram sem se anular. O amor que não se submete à lógica da posse é não apenas mais justo e mais nobre; ele é, sobretudo, mais verdadeiro. Pois só é amor aquilo que, ao tocar a alma do outro, não pretende moldá-la, mas apenas acompanhá-la livremente no seu voo.
Na linguagem da dialética de Hegel (1770 - 1831), poderíamos dizer que o amor possessivo tenta imobilizar o devir, ou seja, recusa o movimento, a mudança, a negatividade e, ao fazê-lo, implode. Ao transformar o amado em objeto, nega sua liberdade, e, com isso, nega também a própria possibilidade do vínculo. O que resulta disso não é amor, mas apego narcisista, medo e controle.
Assim, amar é, de fato, um exercício radical de liberdade. A liberdade é processo, movimento, desenvolvimento mediado. Cada sujeito só se torna verdadeiramente livre ao reconhecer e ser reconhecido por outra consciência igualmente livre. Não há liberdade no isolamento, e tampouco há liberdade onde há dominação. O desejo de garantir o outro, de fixá-lo como objeto estável e disponível, é, na verdade, a negação daquilo que há de mais fundamental no amor: a abertura ao desconhecido, à diferença e à mudança. A tentativa de capturar o outro em categorias previsíveis e imutáveis é uma forma de violência simbólica, pois rebaixa o outro à condição de coisa.
Amar, nesse horizonte, é sustentar o vínculo sem garantias. É recusar as promessas fáceis de eternidade imóvel e, em seu lugar, afirmar o compromisso ético com o presente compartilhado — um presente que é sempre transitório, sempre exposto à possibilidade de transformação. É caminhar ao lado de alguém que está em constante vir-a-ser, assim como nós: alguém que se altera, que deseja, que duvida, que se refaz.
Trata-se, portanto, de uma ética do cuidado e da escuta, não do domínio. De um estar-com, e não de um ter. O amor como liberdade dialética pressupõe que reconheçamos no outro não um espelho de nós mesmos, mas um sujeito singular cuja existência nos desafia a sair de nossas formas cristalizadas de identidade e a participar do movimento de criação mútua. É um laço que não se sustenta por garantias exteriores, mas pela disposição interior de recomeçar continuamente, de reconstruir o vínculo a partir das mudanças, dos conflitos e das descobertas que a vida impõe.
Nessa perspectiva, amar é resistir ao impulso de reduzir o outro à segurança de uma definição. É aceitar que todo amor verdadeiro é, antes de tudo, uma travessia — não um porto. E que a liberdade só se realiza plenamente quando é partilhada, quando se torna espaço comum de crescimento, de escuta e de cuidado. O amor é, assim, a forma mais íntima da liberdade dialética: aquela que não teme a diferença, que não nega a temporalidade, que não exige certezas — mas que, justamente por isso, é capaz de gerar sentido, permanência e verdade.
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Comentários
Postar um comentário