Dialética de Hegel I: A contradição é a raiz de todo movimento e de toda vitalidade
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831) desenvolveu sua filosofia em meio às convulsões políticas e culturais do final do século XVIII e início do XIX. A Revolução Francesa, a ascensão de Napoleão e a crise do iluminismo forneceram o pano de fundo para sua reflexão sobre liberdade, história e razão. Para Hegel, esses acontecimentos não eram meramente fatos empíricos, mas expressões da racionalidade em movimento. Ele afirma: “O real é racional, e o racional é real” (Prefácio à Filosofia do Direito, 1821), expressão que sintetiza sua tese de que a história é a realização progressiva da liberdade por meio da razão encarnada nas instituições sociais.
No plano filosófico, Hegel herda a tradição racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz, o empirismo de Locke e Hume, e, sobretudo, a revolução crítica operada por Kant. Este último representa o ponto de inflexão ao afirmar que o conhecimento é resultado da síntese entre as formas a priori do sujeito e os dados da experiência. No entanto, Hegel vê na filosofia kantiana uma cisão ainda não resolvida entre sujeito e objeto, entre razão e realidade. Seu projeto, portanto, será superar essas dualidades por meio de uma filosofia especulativa na qual o pensamento e o ser coincidam em um movimento dialético.
A dialética hegeliana deve ser compreendida não apenas como um método lógico ou uma técnica de argumentação, mas como a própria estrutura do real e do pensamento, concebidos como processos históricos, relacionais e contraditórios. Em sua forma mais geral, a dialética é o movimento pelo qual um conceito (ou forma de ser) se desenvolve a partir de sua própria negatividade interna.
Diferentemente da lógica formal, que evita a contradição, Hegel afirma que toda determinação é negação: um conceito não se sustenta como identidade fechada, pois carrega em si um momento de oposição que o impulsiona à superação (Aufhebung). Esse termo, difícil de traduzir, significa ao mesmo tempo negar, conservar e elevar. É o mecanismo pelo qual o espírito avança, superando unilateralidades e alcançando formas mais complexas de totalidade.
Hegel redefine a dialética como um processo lógico e ontológico pelo qual a realidade se desenvolve. Esse movimento não é extrínseco, mas imanente aos próprios conceitos. Como ele escreve na Ciência da Lógica:
“A contradição é a raiz de todo movimento e de toda vitalidade; é somente na medida em que algo tem em si contradição que ele se move, tem impulso e atividade.” (Lógica, Livro II, "Doutrina da Essência").
A dialética, portanto, não é apenas um método de exposição, mas o próprio modo como o ser se torna. A partir de determinações abstratas como o “ser” puro, que se revela idêntico ao “nada”, Hegel desenvolve o conceito de “devir” como síntese. Esse primeiro exemplo demonstra que, para Hegel, não há identidade sem diferença, nem ser sem negação.
O conceito de devir em Hegel é um dos pilares fundamentais de sua lógica dialética e para a compreensão de toda a sua ontologia especulativa. Diferentemente da tradição metafísica clássica, que privilegiava o ser como substância estática, Hegel propõe que o ser é essencialmente dinâmico, ou seja, que ser é tornar-se (werden). O devir é, portanto, a primeira figura concreta do pensamento especulativo hegeliano, sendo o resultado imediato da contradição entre ser e nada.
Na Ciência da Lógica, logo no início da “Doutrina do Ser”, Hegel apresenta os três primeiros momentos da lógica pura: ser, nada e devir. Ele começa pela determinação mais indeterminada e abstrata possível: o ser puro, totalmente vazio de conteúdo, que não é outra coisa senão “a pura indeterminação e vacuidade”, o que o torna indistinto do nada. Como ele escreve:
“O ser puro e o nada são, portanto, o mesmo.” (Ciência da Lógica, Livro I, §87).
Essa afirmação não é um jogo de palavras, mas uma demonstração do pensamento em movimento: o ser puro, por não ter nenhuma determinação, não se distingue do nada. Essa identidade entre ser e nada dá origem ao devir, que é o primeiro conceito verdadeiramente determinado, pois é a síntese dessa contradição originária.
“O devir é a unidade imediata de ser e nada.” (ibidem, §88).
O devir não é, pois, uma simples mudança entre dois estados; ele é o processo no qual ser e nada se interpõem e se superam mutuamente, gerando diferenciação e movimento. Cada coisa só é, efetivamente, porque está em constante transição: vir a ser algo, deixar de ser algo — isto é, viver a tensão entre o surgimento e o desaparecimento.
O devir não é apenas uma etapa inicial na lógica hegeliana, mas uma estrutura ontológica do real. Tudo que existe, enquanto determinado, carrega dentro de si a possibilidade de sua própria negação e transformação. Não há substância fixa nem essência imóvel. O real se constitui como processo — e mais que isso, como processo dialético, em que a identidade de cada ser se revela como instável, carregando em si a negatividade que a move para outra forma.
Esse pensamento rompe com a metafísica tradicional (particularmente a de Parmênides e Aristóteles) que via o devir como algo inferior ao ser. Em Hegel, o devir é mais originário que o ser determinado, pois o ser fixo só é possível como resultado de uma superação dialética de um movimento anterior. Como ele afirma:
“A verdade do ser não é ele mesmo, mas o devir.” (ibidem, §89).
A dimensão ética e política do devir se manifesta na concepção hegeliana da liberdade. A liberdade não é um estado dado, mas um processo de realização histórica e racional. O sujeito não é livre por natureza, mas se torna livre ao passar pelo processo de negação da sua imediaticidade e de constituição de si por meio do outro e das instituições.
Em suma, o devir é a categoria inaugural do pensamento dialético, que expressa não apenas uma mudança de estados, mas o próprio movimento interno de constituição da realidade. Toda fixidez é aparente; toda identidade é resultado de um processo. Pensar dialeticamente é, portanto, pensar em termos de devir, o que exige do filósofo abandonar certezas estáticas e acompanhar o real em seu fluxo contraditório.
A dialética hegeliana, inaugurada pelo conceito de devir, nos convoca a ver o mundo como processo, a verdade como resultado, e a razão como uma força que se realiza na história — não apesar da contradição, mas precisamente por meio dela.
A dialética hegeliana é uma crítica às cisões clássicas do pensamento moderno: sujeito e objeto, razão e sensibilidade, liberdade e natureza, finito e infinito. Para Hegel, essas dualidades não são absolutas; são momentos parciais do desenvolvimento do espírito. A realidade é um processo em que os opostos se implicam mutuamente e se transformam em níveis superiores de unidade, o racional não é uma estrutura a priori fixa, mas um vir-a-ser histórico.
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