Ontologia da Significação entre Fé e Razão

A presente reflexão propõe uma reconfiguração dos fundamentos ontológicos do real a partir da noção de atribuição de sentido. Sustenta-se que a existência não é anterior ao sentido, mas dele decorrente. Nesse modelo, tanto a razão quanto a fé deixam de ser instâncias epistemicamente hierarquizadas — onde a razão é tida como via legítima e a fé como crença inferior ou infundada — para serem compreendidas como manifestações distintas de uma mesma estrutura ontológica: o atribuidor de significado. É este que institui, sustenta e legitima a existência de tudo quanto é.

Partimos da tese de que aquilo que chamamos “realidade” só se constitui como tal na medida em que é portadora de um sentido. Atribuir sentido não é um gesto posterior à existência do ente, mas é o próprio movimento que instaura sua existência como ente reconhecível, nomeável, vivenciável. Dessa forma, a existência não precede o sentido; ao contrário, é o sentido que torna algo existente, no plano da experiência, da linguagem ou da consciência.

O ser, portanto, não é substância, nem ideia, nem força, mas uma posição na ordem da significação. O que não é sentido, não é — ainda que seja em algum plano material, sua inexistência simbólica equivale a uma nulidade ontológica na esfera do vivido. Esse deslocamento implica uma ontologia interpretativa ou semântica: ser é ser interpretado.

Dado que a existência depende do sentido, é necessário reconhecer a função do atribuidor de significado — instância lógico-existencial que, a partir de diferentes métodos, confere sentido ao real. Tal atribuidor não é uma substância metafísica ou uma entidade transcendental, mas a própria estrutura operativa pela qual o mundo se torna mundo para alguém. Ele pode operar segundo vias diversas, entre as quais a fé e a razão.

A razão representa o modo lógico, dedutivo e intersubjetivamente verificável de atribuir sentido aos fenômenos. Opera por critérios de coerência, consistência, explicabilidade e previsão. Já a fé é um modo afetivo-existencial de atribuição de sentido, fundado na confiança, na tradição, na revelação ou na experiência subjetiva da transcendência. Embora não obedeça aos mesmos critérios formais da razão, cumpre, para o sujeito que crê, a função plena de significar o mundo.

É nesse ponto que emerge a tese central: se tanto a fé quanto a razão são capazes de conferir sentido ao real — ainda que por vias distintas — então ambas são formas lógicas de finalidade. A lógica aqui deve ser entendida não no sentido formal de proposições bem formadas segundo a lógica aristotélica, mas no sentido estrutural: a fé é logicamente válida enquanto cumpre sua função dentro do ciclo da significação, isto é, enquanto constitui o mundo de um sujeito como dotado de sentido.

Assim, a fé, embora não racional no método, é lógica na finalidade: ela conclui um ciclo de interpretação e constitui a realidade vivida. Sua veracidade objetiva é secundária diante da completude que ela oferece ao sistema de crenças de quem crê. Logo, ela é funcionalmente válida dentro da ontologia do sentido.

A teoria aqui proposta exige o reconhecimento de uma lógica ampliada, que não se restringe ao formalismo dedutivo, mas que inclui modos de coerência interna e finalística. O valor lógico de uma crença, nesse paradigma, não depende de sua justificação universal, mas de sua capacidade de integrar o sujeito em um horizonte de sentido. Propõe-se, assim, uma lógica teleológica do sentido, em que verdade e validade não se confundem com universalidade, mas com a efetividade da significação.

Ao deslocar o centro da existência para o sentido, supera-se o realismo ingênuo e a ontologia substancialista. A realidade não é uma coisa-em-si autossuficiente, mas uma rede de sentidos operada por sujeitos que a instituem como tal. Isso aproxima a teoria de certas concepções fenomenológicas (como a ontologia hermenêutica de Heidegger) e também de abordagens pragmáticas e construtivistas. A realidade é concebida como um fenômeno semântico, e o ser um efeito da interpretação.

Epistemologicamente, a distinção clássica entre saber racional e crença irracional perde sua rigidez. Em seu lugar, afirma-se uma epistemologia do sentido, na qual diferentes formas de conhecimento (científico, religioso, poético, místico, cotidiano) são compreendidas como estruturas funcionais de atribuição de sentido. Isso não implica a equivalência entre todos os saberes, mas reconhece que todos compartilham a função de tornar o mundo inteligível para um sujeito.

Essa concepção abre espaço para um pluralismo epistemológico, em que a validade de um saber está vinculada à sua capacidade de constituir uma realidade significativa, não apenas à sua correspondência com um suposto mundo externo independente da significação.

A filosofia do atribuidor de significado aqui apresentada propõe uma ontologia centrada no sentido e na função lógica da atribuição de significação. Fé e razão, em vez de se excluírem, revelam-se como formas distintas, porém complementares, de realizar a mesma tarefa fundamental: tornar o mundo habitável pela significação. A existência, neste quadro, não é dada, mas conferida. O ser não é anterior ao sentido: é o seu efeito. Com isso, desloca-se a questão da verdade de um paradigma de correspondência para um paradigma de funcionalidade semântica, abrindo caminho para uma ontologia dinâmica, plural e comprometida com a experiência vivida da realidade como campo de sentido.

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