O idealismo transcendental de Kant

O termo idealismo percorre a história da filosofia com diferentes sentidos e matizes. De modo geral, podemos compreendê-lo como a posição segundo a qual a realidade, tal como a conhecemos, depende de alguma forma da consciência, do espírito ou das estruturas cognitivas do sujeito. Em contraste com o realismo, que sustenta a independência absoluta do mundo exterior em relação ao sujeito, o idealismo enfatiza que não é possível pensar o objeto separado da atividade do conhecer. Essa concepção pode assumir diferentes formas, desde o idealismo metafísico de Berkeley, que afirma que só existem ideias e espíritos, até formulações mais sutis, que se concentram no papel constitutivo da mente na experiência.

É nesse contexto que se insere a filosofia crítica de Immanuel Kant, sobretudo em sua obra fundamental, a Crítica da Razão Pura (1781/1787). Kant inaugura aquilo que chama de idealismo transcendental, cuja marca distintiva é a distinção entre fenômeno e númeno. Fenômeno é o objeto como aparece a nós, condicionado pelas formas de nossa sensibilidade e pelas categorias do entendimento. Númeno, ou coisa em si (Ding an sich), é aquilo que existe independentemente da experiência, mas que, segundo Kant, permanece inacessível ao nosso conhecimento. Como ele escreve: 

“Entendo por idealismo transcendental de todos os fenômenos a doutrina segundo a qual eles são representações apenas, e não coisas em si, e em que, portanto, o espaço e o tempo são apenas formas da nossa intuição sensível, não determinações que se encontrem em si mesmas, ou condições dos objetos como coisas em si” (Crítica da Razão Pura, B518).

O núcleo do idealismo transcendental consiste, portanto, na tese de que não conhecemos as coisas como são em si, mas apenas como se apresentam a nós a partir das condições a priori do conhecimento humano. O espaço e o tempo, nesse sentido, não são propriedades objetivas das coisas, mas formas puras da sensibilidade. É o sujeito que organiza os dados da intuição segundo essas formas, tornando possível a experiência. Essa é a razão pela qual Kant fala em uma “revolução copernicana” na filosofia: 

“Até agora se admitia que todo o nosso conhecimento devia regular-se pelos objetos; porém, todas as tentativas de estabelecer algo sobre eles a priori, mediante conceitos que determinassem o que deve ser conhecido, fracassavam. Portanto, tente-se uma vez investigar se não se sairá melhor supondo que os objetos devam regular-se pelo nosso conhecimento” (Crítica da Razão Pura, Bxvi). 

Assim como Copérnico deslocou o centro do universo, Kant desloca o eixo da filosofia: não são os objetos que moldam o sujeito, mas o sujeito que, por suas estruturas, molda a experiência possível dos objetos. Essa posição, entretanto, não deve ser confundida com o idealismo empírico de Berkeley. Kant rejeita a ideia de que só existam espíritos e ideias subjetivas. Ao contrário, ele insiste na objetividade empírica do mundo dos fenômenos. Na Refutação do Idealismo, introduzida na segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant afirma:

“A consciência da minha própria existência é simultaneamente uma consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim” (B275). 

A experiência interna do tempo só é possível, segundo ele, se for mediada pela experiência de objetos externos permanentes. Portanto, os objetos do mundo sensível existem realmente para nós, mas apenas como fenômenos, isto é, como dados que só podem ser conhecidos dentro das formas e categorias da mente humana.

Nesse ponto se esclarece a peculiaridade da crítica kantiana: por um lado, ele rejeita o realismo ingênuo, que afirma que conhecemos as coisas exatamente como são em si mesmas; por outro, recusa também o idealismo dogmático de Berkeley, que dissolvia a realidade empírica do mundo na subjetividade. Kant, assim, propõe um idealismo crítico e limitado: somos constitutivamente ligados ao modo como conhecemos, e esse modo não nos dá acesso ao “em si” das coisas, mas nos assegura a objetividade dos fenômenos no campo da experiência.

No contexto do idealismo transcendental, a concepção kantiana permite compreender a experiência como simultaneamente universal e individual. Para Kant, todos os seres racionais compartilham as mesmas formas a priori da sensibilidade — espaço e tempo — e as mesmas categorias do entendimento, como causalidade, substância e quantidade, que estruturam necessariamente toda experiência. Essas condições não são adquiridas empiricamente nem variam de sujeito para sujeito; pelo contrário, constituem a estrutura universal que torna possível a experiência e garante a objetividade do conhecimento: 

A condição de possibilidade da experiência em geral é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade dos objetos da experiência” (Crítica da Razão Pura, B197). 

Nesse sentido, a experiência não é um mero produto subjetivo arbitrário, mas algo que se organiza segundo leis e formas compartilhadas por todos os sujeitos cognoscente.

Ao mesmo tempo, cada experiência concreta permanece individual, porque o conteúdo sensível que preenche essas formas universais depende das circunstâncias empíricas e da posição particular de cada sujeito no mundo. Dois indivíduos, embora organizem suas percepções segundo as mesmas estruturas a priori, receberão dados sensíveis diferentes em função do lugar, do momento e da situação vivida. A experiência, portanto, é única em sua concretude, irrepetível em sua dimensão empírica, mas ainda assim comunicável e compreensível, pois todos os sujeitos partilham as mesmas condições de possibilidade do conhecimento.

Dessa forma, Kant estabelece um equilíbrio entre universalidade e individualidade da experiência: a estrutura transcendental do sujeito assegura a objetividade e a intersubjetividade, enquanto a singularidade empírica garante que cada vivência seja irrepetível. O idealismo transcendental, portanto, fundamenta a perspectiva de que cada sujeito participa ativamente da constituição do fenômeno, tornando a experiência ao mesmo tempo compartilhável e pessoal, mediada pelas formas universais, mas concretizada em sua singularidade sensível.

I. A CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NO IDEALISMO TRANSCEDENTAL

A concepção de liberdade em Kant parte de sua distinção fundamental entre o mundo sensível e o mundo inteligível, estabelecida a partir do idealismo transcendental. O ser humano, como sujeito finito, só conhece os fenômenos, ou seja, as coisas como se apresentam no espaço e no tempo, nunca alcançando as coisas em si. Entretanto, essa limitação não impede que ele seja um ser racional capaz de transcender a mera esfera sensível. 

A liberdade, para Kant, não consiste na ausência de inclinações ou influências naturais (desejos, emoções e necessidades físicas sempre afetam o agir humano), mas na capacidade de autodeterminação por meio da razão. O sujeito racional possui o poder de agir conforme princípios universais, ou seja, de obedecer à lei moral que ele mesmo reconhece como válida, mesmo quando isso contraria suas inclinações empíricas. 

Dessa forma, a liberdade em Kant é prática e moral: o homem é determinado no plano sensível, sujeito às limitações e inclinações de sua natureza, mas livre na esfera racional, capaz de colocar a razão acima das determinações naturais e agir de acordo com o dever. Em última análise, a liberdade kantiana revela-se como a capacidade de o sujeito racional orientar suas ações segundo princípios universais, tornando-se responsável por sua própria moralidade apesar das limitações do mundo fenomênico.

II. LIBERDADE COSMOLÓGICA E LIBERDADE PRÁTICA

Em Kant, a liberdade pode ser compreendida de duas maneiras distintas: a liberdade cosmológica e a liberdade prática. A liberdade cosmológica refere-se à ideia de agir sem estar totalmente determinado pelas leis naturais ou pelas causas externas. É a concepção de liberdade pensada dentro do mundo físico, como se o sujeito pudesse agir sem ser influenciado por suas inclinações, desejos ou necessidades corporais. No entanto, Kant considera essa liberdade apenas hipotética, pois, na experiência empírica, os seres humanos estão sempre sujeitos às determinações da natureza: somos finitos, sensíveis e nossas ações como fenômenos seguem leis causais.

Por outro lado, a liberdade prática é a verdadeira liberdade moral do ser humano. Mesmo que nossas inclinações e condições naturais nos influenciem, como seres racionais podemos autodeterminar-nos e agir de acordo com princípios universais da razão, que não são impostos pelas inclinações sensíveis. É nessa esfera que o homem transcende, de certo modo, sua condição empírica, escolhendo agir segundo o dever e não apenas por impulso ou interesse imediato.

Um exemplo ilustrativo ajuda a diferenciar essas concepções. Imagine que você sente fome e deseja comer um bolo, embora saiba que não deve por razões de saúde. A liberdade cosmológica seria agir sem ser determinado pela fome — agir como se a necessidade física não existisse, algo que na prática é impossível. A liberdade prática, por sua vez, permite reconhecer a fome, mas decidir não comer o bolo, usando a razão para orientar a ação de acordo com um princípio moral ou prudencial, mesmo que isso contrarie a inclinação sensível.

Dessa forma, Kant distingue claramente essas formas de liberdade: enquanto a liberdade cosmológica é uma ideia teórica sobre agir sem determinação natural, a liberdade prática é concreta, exercida na moralidade, e consiste na capacidade do sujeito racional de autodeterminar-se diante das inclinações e circunstâncias, obedecendo à lei universal da razão.

III. APERCEPÇÃO E LIBERDADE MORAL

Em Kant, a apercepção é a consciência imediata que o sujeito tem de si mesmo enquanto agente pensante. Trata-se do “eu penso” (Ich denke) que acompanha todas as representações e garante ao indivíduo perceber que ele próprio é o autor de seus pensamentos e ações. Essa consciência é fundamental porque torna o sujeito capaz de autodeterminação: ele não é apenas determinado pelas forças externas ou pelas inclinações sensíveis, mas possui a capacidade de orientar suas ações de acordo com a razão. Nesse sentido, a apercepção não se limita a um conhecimento passivo de si; ela constitui a condição que permite ao sujeito racional agir conscientemente e deliberadamente, reconhecendo a si mesmo como agente moral.

A relação da apercepção com a liberdade prática se evidencia na forma como os imperativos funcionam. Para Kant, os imperativos são princípios criados pela razão que ditam regras de ação, mostrando a causalidade da razão no comportamento humano. Ao obedecer a esses imperativos, o sujeito demonstra que pode determinar suas ações por regras que não são impostas por fatores externos ou por inclinações sensíveis, mas que emanam de sua própria racionalidade. A liberdade, nesse contexto, consiste justamente na capacidade de subordinar-se à lei moral que a razão reconhece como válida, mesmo quando ela entra em conflito com desejos ou necessidades naturais.

Dessa forma, a apercepção permite ao homem transcender parcialmente sua condição sensível e ir além da determinação natural. Embora os seres humanos sejam afetados constantemente por inclinações e circunstâncias do mundo fenomênico, a consciência de si enquanto sujeito racional oferece a possibilidade de agir de acordo com princípios universais, contrariando impulsos sensíveis quando necessário. Essa dimensão revela o que Kant chama de condição metafísica do agir: o homem, como ser racional, possui uma esfera de autodeterminação independente das determinações naturais, podendo decidir conforme a razão e não apenas segundo o que sente ou deseja.

Em última análise, a apercepção kantiana fundamenta a liberdade prática: ela garante que o sujeito seja consciente de si e de seu poder de escolha, capaz de criar e obedecer a regras provenientes da própria razão. A liberdade não é entendida como ausência de determinações sensíveis, mas como capacidade de autodeterminação moral, em que a razão permite ao sujeito agir segundo princípios universais, superando a mera inclinação natural. É a consciência de si enquanto agente racional que torna possível a ação moral e confere ao homem sua liberdade efetiva no plano prático.


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